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quinta-feira, 11 de julho de 2019

Célia Lages, uma Mulher Além de seu Tempo


Célia Lages Virgolino nasceu em Itaituba, em 22 de setembro de 1913, tendo falecido no dia 16/06/1995. Filha de Raimundo Joaquim Virgolino e Antônia Lages Virgolino, irmã de Sebastião Lages Virgolino (Seu Babá) e Expedito Lages Virgolino e Antônia Lages Virgolino. Foi uma mulher à frente de seu tempo, uma guardiã do conhecimento dedicada à leitura e à pesquisa com o intuito de materializar suas peças teatrais de cunho social e religioso. Apesar das dificuldades de acesso à literatura, Celita, como era conhecida, detinha o poder da criação, da desenvoltura em muitos campos, tais quais: religião, esporte, cultura, lazer e política. Uma mulher observadora, detentora de um rigoroso senso de justiça. Dedicava-se à educação transversal pautada na ética e nos bons costumes.

Serviço público
            Celita foi vereadora no município de Itaituba, município onde trabalhou por toda a sua vida, ocupando vários cargos na Prefeitura Municipal. Na Secretaria Municipal Estrada de Rodagem – SMER ocupou o cargo de Tesoureira tendo como colegas de trabalho João Baima e Helena Salomão. Conta Francisco Fernandes (Chico Caçamba) que na ocasião de sua contratação, Celita reuniu os servidores e pediu que todos comparecessem naquela noite na barraca da santa para um jantar, solicitando ainda que estivessem trajando calça azul, camisa branca e sapato e meia preta. Foi um momento de muita satisfação e motivação entre os servidores.

Vida religiosa
            Católica fervorosa, seu mandamento maior foi a dedicação às práticas religiosas, tendo trabalhado na catequese, na evangelização familiar, no Apostolado da Oração, nas atividades das Filhas de Maria, e, em especial, no Ofício de Nossa Senhora da Conceição. Apesar de não usar o hábito, indumentária que diferenciava as freiras das congregações religiosas, Celita, foi consagrada a Deus, à Ordem de São Francisco, prestando votos de Pobreza, Castidade e Obediência.
            Em homenagem a seus votos perpétuos ao Senhor, compôs um poema que retratava a opção de vida trocando o seu lar familiar pela vida de clausura (reclusão) comum a frades e freiras. Esse poema teve o objetivo de demonstrar o seu sentimento após ter tomado a decisão de dedicar-se às causas pastorais da igreja, tendo sido adaptado sobre a harmonia da música “O Destino Desfolhou” de Carlos Galhardo na toada de Francisco Petrônio, música que ainda embala os grandes bailes da saudade:

O meu viver traduzia
Felicidade afeição
Na aurora da minha vida
No meu lar do meu rincão
Mas veio um dia o destino
Que minha sorte mudou
Troquei o meu lar paterno
Pelo claustro do Senhor
Eu os vi sem chorar
Vi o pranto, porém sem correr
E parti a sorrir
A pensar que não ia esquecer
Mais depois ah! Saudade
Que expulsei nem sei mesmo dizer
O meu Deus foi bem feliz
Que aos queridos o adeus fui dizer
Hoje relembro ditosa
Meu dia de profissão
Em que entreguei vitoriosa
A Jesus meu coração
Com os teus cravos sagrados
Que o pregaram na cruz
Assim os votos amados
Me uniram a Jesus
Em labor alegria e oração
Qual farol que conduz
Meu barquinho no seu coração
Só me resta esperar
Com a lanterna da fé a luzir
O chamado de Jesus para as núpcias eternas fluir.

            No final da década de 1970 resolveu mudar-se para Belém do Pará por sofrer grande decepção com a reestruturação interna da Igreja de Nossa Senhora Sant’ana, quando do desaparecimento de algumas peças existentes na Igreja, tais como o ostensório, o Círio Pascal, e outras. Tudo isso junto à necessidade de maior atenção à sua saúde pela idade avançada. Deu prosseguimento aos trabalhos religiosos e assistenciais na Santa Casa de Misericórdia acompanhando famílias carentes e professando a palavra de Deus. Acompanhava as obras religiosas sob a égide do Frei Pedro Amém, vigário da Paróquia de Santo Antônio de Lisboa, desenvolvendo trabalhos na Capela do Centrão, localizada no bairro do Jurunas, onde tentou estruturar algumas peças de teatro, mas diante de dificuldades e compromisso de seus integrantes não obteve o resultado esperado.
Contribuição cultural
            Celita trazia consigo o poder de compor e encenar, produzindo dramatizações que impulsionavam a criatividade do ator para a prática da representação/encenação de modo que esses atores eram capazes de executar sua arte mimetizando fielmente a vida real. Envolvia a juventude, transformando-as em atores capazes de encenar peças teatrais nas diversas modalidades: drama, comédia e ficção. Dentre essas modalidades registramos também os gêneros populares, tais como pastorinhas, quadrilhas, cordões de pássaros e outros bichos. Além de idealizar todas essas peças, Celita participava desenhando o modelo das vestimentas e as costurava também, uma exímia design dos vários estilos de roupas exigidas para o figurino. Àquela época, os padres americanos traziam muita roupa dos Estados Unidos dentro de camburões. Ela escolhia as roupas e ajustava a cada personagem, além de buscar outras estampas no comércio do seu Florindo, Benedito Corrêa de Souza (Bibito). O acompanhamento musical dos cordões era ao vivo pelos músicos seu Antão (sax), Chiclete (sax), Carlos Travessa (pandeiro), Chico Soldado (banjo e cavaquinho) e Chico Lopes (tubadeira). Já no final da década de 60 e início de 70, eu (Armando Mendonça) já tocava um pouco de violão,  e cheguei a acompanhá-los em algumas apresentações realizadas em diversas residências. Após a apresentação o dono da casa oferecia o tão esperado mingau de milho, também conhecido como chá-de-burro ou mungunzá, iguaria da quadra junina.
·         Cordões:
     Borboleta[1]
     Boi
     Sabiá
     Bem-te-vi
     Garça
     Pinguim
     Abelha
     Macaco
     Coelinho
     Trevo da Borboleta
·         Quadras Juninas
·         Pastorinhas[2]
·         Comédias:
     O Bolo
     Chapeuzinho vermelho
     Zé Preguiça
·         Dramas:
     Rosa de Luxemburgo
     A Lenda do Príncipe que se encantou

[1] O cordão da Borboleta foi trazido de Santarém pela Professora Anita, de Barreiras, muito conhecida da Senhora Helena Salomão, que recebeu o cordão da professora e, por sua vez, presenteou Celita com a peça no ano de 1946. Fato relevante ocorreu quando da montagem do cordão, Celita percebeu que a feiticeira tinha mais poder do que o próprio médico. Isso feria seus princípios religiosos. Assim, na versão de Celita, a borboleta passaria a ser curada não pela feiticeira, mas, pelo médico.
[2]  A tradição das Pastorinhas é uma herança Portuguesa implantada no Brasil no século XVI. O processo de encenação aumenta a socialização entre os atores jovens e adultos, proporcionando aprendizagem e compreensão sobre o nascimento do Menino Jesus. Personagens: estrela, anjo, pastoras, e pastores, florista, samaritana, três Reis Magos, Rei Herodes e outros.

 
Solidariedade
            Após sua consagração, Celita resolveu adotar uma família, a qual dedicou a sua vida, tendo incorporado como membros, além de seu irmão Babá (falecido na década de 70), Adriana (falecida), Raimundo, Deusimar e Raimundinha. Raimundinha era uma jovem alegre de fácil sorriso, descontraída. Teve sua vida interrompida abruptamente, fato esse que deixou toda a cidade consternada. Itaituba, àquela época, contava com 3.000 habitantes. Celia Lages possuía uma casa, que passou para a família adotada. Essa família foi companheira de Celita até os últimos dias de sua vida, fato pelo qual ela lhes guardava imensa gratidão.
            Ainda manifestando a sua solidariedade. Itaituba tinha uma carência de professores e carência de hotelaria. Celita hospedou em sua casa as professoras da SEDUC que vieram de Santarém para prestar serviço em Itaituba. São elas: Profa. Odeise, Profa. Tertulina e Profa. Mariinha.
Guardiã da juventude
            No Ofício de Nossa Senhora da Conceição, Celita dedicava os sábados à Cruzada Juvenil, onde preparava os jovens para os Sacramentos do Batismo, da Comunhão e da Crisma. Após o compromisso com esses jovens, organizava movimentos direcionados ao lazer. Celita Organizava quermesses, picnics na ilha do meio e praia do sapo, em que os membros da Cruzada eram identificados com um laço amarelo (iniciantes) ou uma faixa amarela com uma cruz na ponta (aspirantes). Além de toda essa atenção dedicada aos jovens, Celita tirava um pouco de seu tempo para ministrar aulas de datilografia.
            Era muito querida pela juventude, tendo sido chamada por muitos de madrinha Célia, pois sua simpatia se estendia aos pais, que frequentemente a escolhiam como tutora espiritual de seus filhos no Sacramento do Batismo.
            Celita tinha muita preocupação com o lazer da juventude, mais especificamente com o das meninas, que, à época tinham uma educação rígida pelas famílias, tolhendo-as de qualquer diversão que fosse. Lembro aqui eventos que aconteciam durante o ano, marcados por festinhas, programações religiosas, partidas de futebol. Nesses eventos sempre havia aproximação dos rapazes interessados nas moças. Celita abdicava dos seus afazeres para sair de casa em casa pedindo a autorização para os pais liberarem as moças para participar das festinhas, assumindo toda a responsabilidade sobre o comportamento das moças. As festinhas sempre aconteciam em casas de família, em um dos dois clubes sociais da cidade (Auto Esporte Futebol Clube e América Futebol Clube), ou no salão paroquial. Uma dessas casas era a residência da própria Celita, apelidada de “Céu Azul”, até pela sua pintura e à mulher que ela representava perante as famílias, uma mulher séria, responsável, ao mesmo tempo brincalhona, mas sempre preocupada com postura que os jovens deveriam tomar como comportamento padrão. Celita gostava de dançar. Tenho a lembrança dela orientando as moças sobre como a dama deveria portar-se perante o cavalheiro. Dizia que a dama deveria deixar o corpo leve e permitir que o cavalheiro a levasse, diminuindo a possibilidade de errar o passo no decorrer da música.
Amante do esporte
            Celita era apaixonada por dois times de futebol: Auto Esporte Futebol Clube e Paysandu Esporte Clube de Belém do Para. O fanatismo pelo Paysandu era tão grande que, certa noite, Celita surpreendeu Deuzimar (Crecré), que considerava como filho, retornando de uma noite de curtição. Celita, ao perceber que ele havia ingerido álcool chamou sua atenção dizendo que o álcool fazia mal à saúde e pediu que ele parasse de beber. Deuzimar sabendo que ela era fanática pelo Paysandu, replicou: Tininha (como ele a chamava), eu paro de beber, mas tenho uma exigência a fazer: que a Senhora passe para o Clube do Remo que é o meu time do coração. Celita se recolheu para dormir. Passados três dias ela chamou o Deuzimar e disse: olha, Deuzimar, se tu quiseres continuar bebendo, continua, porque do Paysandu eu não saio e ponto final!
O  Legado
            Depois de tanto discorrer sobre momentos da trajetória de Célia Lages Virgolino, é importante ressaltar a feliz consequência das sementes plantadas por Celita. Aqui relembro Dona Idolazy Moraes das Neves, quando me dizia com orgulho que se considerava  discípula do conhecimento que Celita deixou. Foi um legado muito vasto e Dona Idolazy soube extrair em cada sentimento colocado na expressão da arte e da cultura. Idolazy seguiu a filosofia do pensamento e da criação de Celita, produzindo fatos novos, enredos de músicas, e toda sorte de novos trabalhos, já de origem autoral.

Considerações finais
            Esta pesquisa teve como objetivo resgatar um pouco da história de uma mulher que viveu e produziu suas obras com manifestação além de seu tempo, seus conhecimentos exerceram o papel de pioneira no movimento cultural e artístico na cidade de Itaituba.
           
        Registro meus agradecimentos especiais à Profa. Socorro Amorim, que prestou valiosas informações do acervo de Celita, bem como a Deuzimar, Tia Maria Viana, Tio Celine, Dona Helena Salomão, Chico Caçamba e todos que os participaram do grupo de discussão “Homenagem a Célia Lages Virgolino”, que foram fantásticos em compartilhar suas lembranças com um pouco de humor, enriquecendo essa pesquisa sobre Célia Lages Virgolino.