Carros são roubados e desmanchados em várias cidades do país. Mas há uma localidade no interior do Pará que está sendo despedaçada por furtos. E a coincidência é que foi criada por uma montadora de carros: a multinacional norte-americana Ford e seu fundador.
Idealizada por Henry Ford nos anos 20 do século passado, a Fordlândia não chegou a vingar como centro de produção de borracha em plena selva amazônica, mas deixou um patrimônio histórico quase inabitado para o município de Aveiro (região oeste do Pará) e desconhecido dos brasileiros. Apesar da importância dos prédios construídos pela Ford, o local não tem a devida manutenção, ainda aguarda definição sobre o processo de tombamento e sofre com ação do tempo e de vandalismo
Na última semana, após
recomendação do Ministério Público Federal (MPF), a prefeitura baixou uma
portaria, determinando que a administração da vila de Fordlândia notifique
sempre os casos de depredação dos edifícios e casas. Para os procuradores, o
município precisa atuar com mais rigor contra a destruição do patrimônio, que
foi verificada em análise in loco.
Onde estava o campo de golfe com nove buracos, que deleitava os chefes norte-americanos, serve hoje de pastagem para bois --destino semelhante aos seringais, que foram derrubados para dar lugar à grama. Já as quadras de tênis são usadas como currais das vacas.
Muitas
das obras precisam de manutenção urgente. Segundo o MPF, o antigo hospital, o
galpão do trapiche e as casas da Vila Americana foram os locais mais afetados e
que mais precisam de atenção especial.
À espera do tombamento
A região
que guarda todas as construções de um projeto audacioso, mas fracassado, está
sendo estudada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional), que vai decidir se o local fará mesmo parte do patrimônio histórico
nacional. Porém, não há prazo para conclusão do processo, que começou há pelo
menos seis anos.
“Mas até
que saia a análise, a área é considerada protegida. Esse processo passa por
técnicos daqui e de Brasília, e normalmente é demorado porque necessita de
estudos históricos detalhados”, explicou a técnica em arquitetura e urbanismo
do Iphan no Pará, Tatiana Borges.
Segundo o
Iphan, o hospital e uma das casas da vila foram completamente destelhados nos
últimos anos, conforme análise feita no local. “Tudo isso está sendo apurado.
Tem gente que diz que as telhas foram retiradas com autorização. Tem uma parte
dos galpões industriais, na área do cercado, que está desocupada. E as casas
estão bem avariadas, porque ficam abandonadas, e as pessoas começam a
depredar”, explicou.
Borges
ainda afirmou que o município de Aveiro assinou um termo para garantir a
conservação e, em contrapartida, receberá recursos federais para reformar o
local. “É por meio do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] das cidades
históricas, em um acordo com a prefeitura. Em caso de prédios históricos, um
imóvel precisa de manutenção, restauração e proteção. Se você restaura e não
fiscaliza, fica à mercê de vândalos”, disse a técnica.
Sobre a
responsabilização pelos danos, o Iphan acredita que a culpa é do município que
agora se comprometeu a fiscalizar a região.
“Nós
ficamos fiscalizando à distância. Nosso quadro técnico é reduzidíssimo. Pedimos
que as prefeituras fiscalizem, pois é muito mais fácil para eles, que estão
perto, do que para nós. No caso da Fordlândia, houve esse comprometimento
também do município”, afirmou.
Ciclo da
borracha
O ciclo
da borracha transformou a Amazônia na região mais rica do país no final do
século 19, cuja síntese máxima é o suntuoso teatro Amazonas, em Manaus, com
seus mármores italianos e seu entorno com ruas emborrachadas para evitar que o
barulho das carruagens atrapalhasse os recitais líricos.
ONDE FICA O PARÁ FORDISTA
Mas a
situação mudou quando o inglês Henry Wickman inaugurou a “biopirataria” e levou
sementes e mudas para as colônias britânicas na Ásia. Na primeira década do
século 20, os barões da borracha não conseguiam fazer mais frente ao preço
barato do látex extraído das plantações na Malásia, Sri Lanka e Indonésia.
Irritado
com o quase monopólio dos britânicos em relação ao produto que garantia os
pneus de seus veículos, Henry Ford imaginou reproduzir no Pará as fazendas de
Hevea brasiliensis nos moldes asiáticos e não do jeito original (espalhada pela
floresta, o que obrigava o seringueiro a percorrer longos caminhos).
Idealizador
da revolucionária linha de montagem, que reinventou o capitalismo, Ford queria
controlar toda a cadeia de produção. Nos EUA, ele tinha minas de ferro e
carvão, que iam para suas metalurgias para forjar as peças automotivas. Por
isso, não é de se estranhar que ele quisesse produzir a matéria-prima para seus
pneus e todas as partes emborrachadas de seus carros.
O homem
mais rico do mundo à época só não contava que a seringueira sofria com pragas
de fungos e parasitas em seu local original (o que não acontecia na Ásia). E
uma planta ao lado da outra só aumentava a velocidade da infestação.
A
produção em Fordlândia e Belterra nunca chegou a 1% do total mundial, mesmo
durante a ocupação japonesa das plantações no Sudeste Asiático. E a empresa
ainda sofreu com greves, motins, oposição dos antigos barões paraenses e dos
políticos locais --inclusive da prefeitura de Aveiro, que hoje tem que zelar
pelo que restou da aventura fordista.
Fordlândia
saiu do papel em 1927, mas, após pestes nas plantações e motins de seus
trabalhadores, ganhou em 1934 uma cidade-irmã: Belterra, na outra margem do
Tapajós, um dia e meio rio acima. Esse projeto também não foi bem-sucedido,
mas, pelo menos, o local ficou como sede de um município, e as edificações por
lá estão preservadas. A Ford abandonou seus empreendimentos brasileiros em
1945, que ficaram a cargo do Ministério da Agricultura por mais uns anos até
caírem no descaso.
Em 1945,
o latéx sintético finalmente ficou comercialmente viável graças ao acordo dos
EUA com a Arábia Saudita, que passou a vender barato o petróleo que substituía
a seiva amazônica como base da borracha. Em 1951, o país das seringueiras vive
um momento revelador do fim de um ciclo econômico: no porto de Santos chega o
primeiro carregamento de borracha vinda de Cingapura.
A triste
coincidência histórica é que atualmente Detroit (EUA), conhecida como “Motor
City”, também vive um processo de deterioração que acompanha toda indústria
automobilística norte-americana. Vários prédios que foram da Ford na região de
Michigan estão em ruínas como na brasileira Fordlândia.
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