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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Análise do Cordão do Tangará pelo poeta João de Jesus Paes Loureiro


A poética do Tangará

O Cordão do Tangará, de Itaituba, é um exemplo de cordão de meia-lua, em que o caráter musical predomina e o sentido coreográfico organiza a progressão cênica. Nele estão cumpridos todos os compromissos de gênero, isto é, “canto de rua”, “canto de apresentação”, “canto de despedida”. O Caçador é o vilão, ainda que depois redimido, mas expulso pela Princesa, da convivência da comunidade.

O núcleo dramático é antecipado em cantos logo nas primeiras cenas:

(Canta o Caçador)

Já matei bicho feroz com uma arma de valor

Vou matar o Tangará, um bichinho cantador.


(Todos)


Olha lá Caçador, repara o que vais fazer,

Se matares o Tangará, terás que te arrepender.



(Fala o Caçador)


Tu aí estás pousando e eu cansado de andar,

Toma lá tua recompensa e nem dá tempo de voar.

(atira e corre se escondendo)

Morreu nosso Tangará

Que era a alegria do nosso cordão

Deixando tanta tristeza e pensar

No nosso humilde coração.

Deste momento em diante, deflagra-se a perseguição do Caçador e o empenho para ressuscitar o pássaro. Eis uma inversão da ordem dramatúrgica entre o anticlímax e clímax. O clímax, a morte do pássaro, antecede o anticlímax contido na ressuscitação do Tangará e punição do Caçador. Contraria invertendo a ordem definida por Aristóteles na poética. Mas o interesse não se dilui, porque, novamente, estamos diante de um drama e não de tragédia. No pássaro junino percebe-se a normalidade, a precipitação dramática ocorre quando é concluído o “modo de acontecimento”, o “como acontecer” daquilo que já era previsível.

A modalidade “cordão de meia-lua” do pássaro junino conjuga mais funcionalmente a dramaturgia cênica com poesia e dança, sob a regência dos cantos. Por isso mesmo, tem uma tendência mais lírica e acentua a diversidade criativa do gênero. Não se trata de reprodução, e sim invenção.

Há uma costumeira e cômoda identificação do Pássaro Junino com folclore. De certa maneira, pela celebração do folclore na intelectualidade, no sistema de ensino, nas datas cívicas, enfim, criou-se um sentido de valor assegurado nas camadas sociais. Uma norma de valor consagrado. A partir dessa espécie de cânone, as camadas populares sentem-se elevadas em praticar eventos cunhados como folclore. Ainda que, no caso da Amazônia, e especialmente no Pará, predomine a produção decorrente da cultura popular e, o que há de folclórico, seja mais por transferência conlonizatória, isto é, folclore de outras histórias culturais reproduzido entre nós. Não se pode folclorizar a cultura artística ou ritualística indígena, e nem a ribeirinha. São criações simbólicas de uma cultura “flúvio-florestal”, para lembrar Orlando Valverde, extravasadas para o ambiente urbano, fruto de produção criativa e não de imitação consuetudinária. É necessário que os grupos juninos compreendam que, no caso do pássaro, a condição de produto artístico construído no âmbito da cultura popular confere a ele uma dimensão tão elevada como folclore, porém valorizado pela condição de ser criação de artista do povo paraense e teatro popular musicado da maior qualidade.

O pássaro junino recente (vem dos meados finais do século XIX) tem autoria individualizada, diversidade estilística, evolução temática, revelação de visão pessoal de mundo nas várias obras de um mesmo autor. Ser cultura popular e não folclore faz do pássaro junino um acontecimento cultural especial. Suporte visível do imaginário paraense- amazônico é um teatro sustentado por uma surrealidade tropical, distinguido pelo realismo mágico de nossa cultura.

O nosso Cordão do Tangará de Itaituba é um belíssimo produto dessa modalidade de teatro paraense. Puro exemplo de pássaro junino, gênero teatral dessa modalidade de teatro paraense. Puro exemplo de pássaro junino, gênero teatral musicado que é a maior contribuição da cultura paraense à cultura junina brasileira.


João de Jesus Paes Loureiro

Poeta, professor de estética da UFPA

e pesquisador da cultura amazônica.

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